Uma História de Amor

A história da Ponta do Farol está entrelaçada à história da família construída por Zacharias e Adelaide, solidificada nas paredes do Hotel Farol e nas memórias dos que ali conviveram.

"O casal começou sua vida em comum dois anos antes de se estabelecer em Mosqueiro. Nenhum nascera ou vivera sua infância naquelas praias: Zacharias, paraense de Bragança, e Adelaide, lisboeta que chegara ao Brasil ainda menina. Entretanto, foi nas terras de Mosqueiro que os dois fincaram suas raízes, constituindo uma família numerosa, cujas ramificações, passados mais de oitenta anos, continuam estendidas por sobre o solo do Farol, ao redor do edifício que simboliza sua história de amor e devoção recíproca: o Hotel Farol”.

(OLIVEIRA & SILVA. Hotel Farol: História e Memórias, v. I, p. 94, 2020)


Zacharias Mártyres

Bragantino, de origem simples, que completou os estudos na capital belenense e se tornou grande jurista, empreendedor e visionário

Zacharias Paulino dos Santos Mártyres nasceu no dia 18 de abril de 1884, na cidade de Bragança, Pará. O bragantino saiu do interior para estudar em Belém, onde se formou como advogado em uma época de transformações significativas para os costumes sociais e culturais em que a capital paraense explodia como uma potência brasileira. Com sua atuação na advocacia, alcançou reputação de grande jurista, fama que o acompanhou até mesmo depois de deixar o convívio da alta sociedade belenense, refugiando-se em Mosqueiro.

Nas duas primeiras décadas do século XX, Zacharias consolidou sua carreira jurídica e expandiu sua atuação profissional para outras áreas promissoras, tornando-se empreendedor no setor imobiliário e até mesmo dono de cinemas, entre outros projetos que idealizava. Constituiu um primeiro casamento nesse período, com o nascimento de sua primogênita Henriqueta Aguiar Mártyres em 1914, tendo se desquitado em 1923.


Adelaide de Almeida

Portuguesa criada em território brasileiro sob cuidado rígido da tia e que, antes de se tornar esposa e mãe, sonhava em ser pianista

Adelaide de Almeida nasceu no dia 05 de dezembro de 1907 em Lisboa, Portugal. Veio inicialmente com sua família para o Brasil em 1912, mas retornou com a mãe e irmãos para Portugal. Foi apenas em 1917, aos 09 anos de idade, que Adelaide se mudou definitivamente para o território brasileiro, passando a morar com sua tia paterna, Júlia, em Belém do Pará. Em Portugal, sua mãe, Maria do Patrocínio, estava vivendo momentos difíceis e não tinha condições de criar a filha. Seus irmãos vieram aos poucos e foi somente em 1922 que a mãe conseguiu vir, de fato, morar no Brasil.

Antes de se casar com Zacharias, ela viveu uma vida social restrita, sempre aos cuidados da tia, uma mulher inteligente e rigorosa que administrava sozinha uma tinturaria. Em Belém, Adelaide chegou a cursar até o segundo ano do ginásio, mas como vivia uma vida de classe média, simples e sem luxo, e seu pai e sua tia não tinham condições de bancar os estudos, desistiu do sonho de ser pianista e, a partir daí, foi preparada para ser esposa e mãe, como era comum na época.


O enlace de Zacharias e Adelaide

Quando Adelaide conheceu Zacharias, advogado de renome, recém-desquitado, cliente da tinturaria e amigo de sua tia Júlia, jamais imaginava que um dia viesse a constituir com ele uma família, pois, além da diferença de idade entre eles – vinte e três anos –, havia a diferença de status social. Zacharias era considerado um dos homens mais importantes de Belém, enquanto Adelaide não tinha posses e nem havia completado seus estudos. Sempre muito elegante e com um visual impecável, o bragantino costumava levar seus ternos e paletós para lavar no estabelecimento de sua amiga, a tia da jovem. A frequência das visitas e o teor das conversas entre os dois fizeram Adelaide acreditar que havia um interesse do recém-desquitado em sua tia, porém, com o tempo, ficou claro que Zacharias estava empenhado em conquistá-la.

Foi então que a jovem passou a vê-lo com outros olhos e notou que suas intenções eram verdadeiras, no entanto, sua condição de desquitado não permitia um novo matrimônio perante a sociedade, mas isso não impediu que Zacharias propusesse à Adelaide, por intermédio de sua tia, para ser sua companheira. Elaborou um contrato nupcial, redigido de próprio punho, garantindo todos os direitos de esposa e aos futuros filhos.

O casal Zacharias e Adelaide, no início de sua história, na Ponta do Farol, Ilha de Mosqueiro (1928-1930).
Fonte: OLIVEIRA & SILVA. Hotel Farol: História e Memórias, v. I, p. 7, 2020

A casinha

A morada à beira da praia, na Ponta da Farol, tornou-se o lar da família de Zacharias e Adelaide desde 1930. A casinha foi o segundo lar do casal. Eles foram os pioneiros e desbravadores do lugar, superando inúmeros desafios para ali se estabelecerem. Zacharias investiu todo seu dinheiro no terreno e o transformou num pequeno sítio, com criação de animais e plantação de árvores frutíferas. Naquela época, não havia luz, nem água encanada, apenas de poço. O casal residia em um local isolado, sem vizinhos, sem estradas e somente com uma charrete, que era conduzida para levar o bragantino até o navio destinado a Belém, no trapiche da Vila. Adelaide estava grávida de sua primeira filha e passava o dia com sua mãe, um empregado e uma cozinheira. Viviam no paraíso natural, sem privilégios de luxo. Zacharias fez daquele lugar o seu refúgio, ao lado de Adelaide, com quem consolidou um amor firme e sincero com o passar dos anos e das experiências de vida em comum.

A casinha branca, na Ponta do Farol, no início da década de 1930.
Fonte: OLIVEIRA & SILVA. Hotel Farol: História e Memórias, v. II, p. 24-25, 2020.

Uma família numerosa

Os doze filhos de Zacharias e Adelaide, da mais nova ao mais velho, na década de 1950.
Fonte: OLIVEIRA & SILVA. Hotel Farol: História e Memórias, v. II, p. 35, 2020.

Adelaide e Zacharias tiveram treze filhos, contando com a primeira filha, Zélia, falecida antes de completar o primeiro ano de vida. Depois dela, nasceram Hélio, Layde, Ruy, Lucy, Hugo, Dora, Sônia, Mâncio, Múcia, Cesar, Márcio e Áurea, todos de parto natural, na mesma casinha que se tornou o berço de suas histórias. Todos nascidos na Ilha, vivenciaram em sua infância tempos diferentes da história do hotel, desde a época de sua construção, à luz de lamparina, até os tempos difíceis, após a morte do pai, quando a família precisou assumir os negócios, ao mesmo tempo em que os irmãos mais velhos ajudavam a mãe a criar os mais novos, principalmente quando foram morar na capital para completar os estudos.

De cassino à casa de hóspedes à hotel residência

No final da década de 1930, com a urbanização do bairro do Farol e a liberação do jogo pelo governo Vargas (1934-1946), Zacharias se entusiasmou com o projeto de edificar um cassino, idealizado como fonte de renda para o estudo e sustento da família, que se tornava cada vez mais numerosa. Seria um lugar para descansar e aproveitar a harmonia com a natureza, sem a agitação da capital. Zacharias acreditou no potencial econômico de seu novo empreendimento, sonhou e investiu tudo na realização deste projeto que perdurou o resto de sua vida, dedicando-se à família, ao trabalho e à construção de seu tão sonhado cassino que depois se tornaria hotel.

O cassino, idealizado como um grande transatlântico, foi sendo edificado por partes em volta da casinha branca em que moravam, o centro do edifício. Zacharias sempre esteve à frente das obras de construção e cuidava de cada detalhe, tudo era cuidadosamente projetado por ele, que não cansava de sonhar e empreender em seu novo intento. Aos poucos, ele foi atraindo seus amigos e visitantes para os arredores da Ponta do Farol e os terrenos em volta da praça foram tendo novos donos, aproximando pessoas estimadas da elite belenense àquela ponta até então isolada.

As obras de construção do hotel perdurariam ainda por muitos anos depois da fixação do casal em Mosqueiro. Em muitos períodos, a família precisou morar em outro local, enquanto as obras prosseguiam. Houveram muitas dificuldades nesse processo de construção, pois, na época, o material era trazido de canoa, e muitas vezes, quando os empregados não estavam, a maré vinha e se perdia todo o material. Mas aquela ponta era uma fonte de inspiração para Zacharias e permitia desfrutar de uma visão única da natureza, o que o motivou a insistir em construir naquele lugar, apesar das adversidades que a natureza do entorno prometia oferecer.

A edificação do muro que contorna a parte anterior do terreno do hotel e uma das escadarias de acesso à praia, em 1949.
Fonte: Autoria desconhecida, apud OLIVEIRA & SILVA, v. II, p. 66, 2020.

Em 1946, o jogo foi oficialmente proibido no Brasil e, ainda com as obras em andamento, Zacharias precisou adaptar seus planos de cassino para casa de hóspedes, tornando-o um lugar para receber seus amigos. E foi assim que, de repente encheu de gente sem nunca ter sido inaugurado. Sua esposa Adelaide permaneceu sempre ao seu lado, com a ajuda de sua mãe Maria do Patrocínio, mantendo o empreendimento do esposo. Foram anos de esforço e dedicação, fruto de muita luta e muito trabalho.

Os hóspedes, a maioria amigos de Zacharias, vinham passar os meses de férias escolares ou desfrutar de um breve período de lazer. Durante os primeiros anos, vinham passar o veraneio e se hospedavam na casa, que ainda não era hotel. A clientela foi se formando, e, aos poucos, nasceu a necessidade de transformar aquele lugar de uma casa de hóspedes em um hotel, enquanto a família permaneceu residindo na parte onde foi preservada toda a estrutura da casinha. Adelaide e Zacharias recebiam a todos com hospitalidade e cortesia, ele sempre formando a roda de amigos para o bate-papo, ela cativando a todos com sua amabilidade.

O casal Adelaide e Zacharias, com os filhos Márcio e Sônia, em frente ao hotel, na década de 1950.
Fonte: OLIVEIRA & SILVA. Hotel Farol: História e Memórias, v. II, p. 14-15, 2020.

Em quase três décadas em que esteve à frente da administração do hotel, Zacharias não cansou de buscar melhorias para o prédio, e apesar de planejar novas empreitadas, nem sempre conseguia realizá-las, uma vez que o investimento era apenas seu, nunca teve sócio ou auxílio de terceiros em suas obras.

O projeto do advogado que sonhou sonhos de engenharia tornou-se concreto ao longo dos anos em que Zacharias repetiu diariamente sua lida Belém-Mosqueiro, advogando na cidade, desfrutando da vida familiar na Ponta do Farol, criando os filhos com sua Adelaide, construindo e comandando a construção do hotel que deixou inacabado.

Zacharias Mártyres ficou conhecido como visionário e patriarca, um homem empenhado na edificação daquele tão sonhado complexo arquitetônico e dedicado à sua família e grande prole, dois projetos que nasceram e se constituíram lado a lado em sua trajetória na Ilha de Mosqueiro.

O complexo arquitetônico

O conjunto arquitetônico de propriedade da família é composto por três prédios principais:

O prédio “central”

mais antigo, construído a partir de algum momento entre 1936 e 1938

O prédio “anexo”

construído a partir do final da década de 1930

O prédio “redondo”

um polígono de doze faces, erguido a partir do final da década de 1940

A bordo do transatlântico

“O edifício idealizado por Zacharias se aproximaria, em sua estrutura, beleza e função, em tudo, com o navio em alto-mar: o andar superior do hotel é circundado por corredores envidraçados, intercalados com venezianas, que, abertas, permitem a entrada dos ventos incansáveis que vêm da baía. (...) A idealização de um grande transatlântico inspirada nas viagens de outrora feitas pelo advogado foi cuidadosamente pensada em cada detalhe da obra, hoje tombada como patrimônio histórico. A visão proporcionada de cada canto do interior deste navio-hotel seria semelhante àquela que se tem em alto-mar quando se avista a paisagem em volta, de uma visão do convés, seja da proa, seja da popa do navio, sempre se vê a imensidão infinita do rio-mar.

A fachada externa do prédio “central” do Hotel Farol foi inspirada na arquitetura europeia do começo do século XX, apresentando elementos do estilo art déco, tais como sobriedade e leveza nas formas geométricas estilizadas, harmonia entre os elementos arquitetônicos e o ambiente, o pátio, a fachada, e, no plano interno, as escadarias. (...) O interior do hotel é composto por ambientes distintos uns dos outros quanto à tipo de piso, formato arquitetônico e disposição do mobiliário. Cada compartimento é parte de uma coletânea de momentos da vida do casal Zacharias e Adelaide que foi sendo consolidada aos poucos, ao longo dos anos de vida em comum, com cada etapa da construção, parte dela feita pelas mãos do próprio Zacharias ou sob seu comando. Na aquisição de cada peça do mobiliário eclético que compõe o cenário do interior do hotel, o gosto refinado do patriarca harmonizou-se com a sensibilidade do olhar de Adelaide, que apreciava a sutileza nos detalhes decorativos e o requinte de objetos delicados (...). Além do mobiliário, podem-se perceber outros detalhes artísticos na construção compondo o ambiente interno do hotel, desde janelas com vidros bisotados, a vitrais, azulejos portugueses, pisos em ladrilho hidráulico e madeira de lei, além da escadaria que leva ao andar superior”.

(OLIVEIRA & SILVA, 2020, v. I, p. 76)

O prédio mais antigo do hotel, visto a partir da Ilha dos Amores, no início da década de 1950. No andar superior, havia um solário para o banho de sol, de frente para o horizonte, e, logo abaixo, no andar térreo, a varanda do hotel, uma área coberta para jogos e lazer. Ao longo das décadas de 1960 e 1990, cinco suítes foram construídas nesses espaços, visto que as acomodações originais da época eram somente com banheiro externo.
Fonte: OLIVEIRA & SILVA. Hotel Farol: História e Memórias, v. II, p. 62-63, 2020.

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Uma gestão compartilhada

Após o falecimento do patriarca Zacharias em 1958, Adelaide continuou a cuidar e administrar o hotel junto a um dos filhos mais velhos e, anos depois, após o falecimento deste, outros filhos e filhas foram dando apoio através de uma gestão compartilhada, estando presentes principalmente aos fins de semana, férias e feriados, quando a demanda de clientes era maior. O hotel ficou por quase cinquenta anos sob a administração de Adelaide, com apoio dos filhos, e nesse processo, muitas dificuldades foram vividas e muitos desafios superados para que hoje o Hotel Farol se mantenha firme e conservado, convidando seus visitantes a uma viagem no tempo. Após a morte da matriarca, em 2007, aos 100 anos de idade, o hotel continua a ser gerido por um grupo de irmãos com o intuito de preservar não apenas o local, mas a história e as memórias deste lugar. Filhos, netos e bisnetos do casal continuam a obra.

O Hotel Farol na década de 1970.
Fonte: OLIVEIRA & SILVA. Hotel Farol: História e Memórias, v. III, p. 2-3, 2020.

Preservando um patrimônio histórico e cultural

O Hotel Farol, é uma das poucas edificações do início do século XX ainda preservadas na Ilha de Mosqueiro. Desde sua construção, a família investe na conservação e melhoria do complexo arquitetônico. Além da manutenção e das reformas, as obras ali realizadas, e no seu entorno, foram fundamentais para garantir a sua sobrevivência como patrimônio familiar e empreendimento hoteleiro na Ilha de Mosqueiro. O esforço da família para manter preservado e funcionando o empreendimento, que existe há mais de oitenta anos, fez com que, em 2004, o Hotel Farol fosse tombado como Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Pará.

COLEÇÃO HOTEL FAROL: HISTÓRIA E MEMÓRIAS

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